Ex vida

à Carolina

Batem a porta, inacreditável e surpreendentemente, tudo terminou. Nem um beijo, mesmo de despedida. Nem uma fresta de esperança ou um olhar mais candido. Apenas, aquele sorriso-quermesse de eventos beneficentes e aquela nuance de carinho disponível em qualquer camelô.

Você ali, parado, naquele hall exíguo, naquela vida exígua. Parado entre o elevador e a porta, entre a dor e a alegria, entre o afeto e a indiferença. Parece que todos os seres abstratos lhe agridem, pisam, espremem você contra você mesmo. Parece que você é o centro gravitacional da dor, das angústias e da agonia.

A dor é grande e você sente vontade de rasgar a camisa, enfiar a mão no peito e extrair o coração, para ver se a dor passa. Mas, não há força para isso. Apenas, paredes, paredes do corpo, paredes do elevador, paredes do destino, paredes e mais paredes velando a vida.

O que resta? Apenas, pegar seu amor no chão, soprar os detritos, enrolá-lo e guardar novamente no coração. E, assim, como um cachorro, com o rabo entre as pernas, sair de mansinho. Entrar no elevador, apertar o botão. Sentir que algo desce e a dor sobe.

A máquina desce, o olhar perdido, vontades perdidas. A mente, em segundos, percorre a felicidade prescrita. Outra máquina disparando no peito. O resto do corpo omisso a qualquer gesto. Um querer ficar estático, parado no tempo e no espaço, com o pensamento e os sentidos perdidos. As pernas mal podem sustentar o corpo, parece que os braços desprendem-se e vão caindo lentamente no chão. Parece que o corpo implode em slow-motion. Tem-se a sensação de ser apenas, um amontoado de células.

Um baque surdo, o elevador chega ao térreo, uma porta se abre. Você recompõe-se, esfrega os olhos com a ponta da camisa e enxuga uma lágrima que, distraidamente, passeava pela sua face. Você percebe que existe o mundo e que não pode permanecer assim, tem que estar lúcido, tentar amar, tentar odiar – por imposição sua – , perdoar, sorrir, ocupar seu espaço. Você pensa ser um louco literal. Mas, percebe que é louco a partir de sentidos empíricos.

Olha!… Você está na rua, porte-se, não fique aí parado que nem um boboca. Mexa-se, assim, você pode atrapalhar o mundo. Saia da frente seu lerdo, seu idiota, não vê que o moto-contínuo da vida pode lhe atropelar. Então, você foge, passa uma borracha na mente, dá corda no corpo e ‘sai se andando’ pelo reflexo. Repara uma mulher e vira o pescoço – é o instinto -. Para extravasar seu lirismo, pensa num bom sanduíche com bacon e uma Coca-Cola, bem gelada, para dar um arroto bem sonoro para despertar os sentidos e tirar o amargo da boca, da vida, do peito.

Você conseguiu se reanimar, está bem melhor. Sente-se como se fosse o senhor do universo, sua liberdade é total, faça o que fizer, não existe satisfação nenhuma a dar. A vida agora é só sua, ninguém mais necessita da parte que você dividia. Mas, tudo isso é momentâneo. Novamente você vai abaixando a cabeça, a dor que jogaram sobre você pesa demais, é difícil carregá-la. A depressão lhe envolve com suas tenazes.

Toda essa liberdade lhe assusta, você sabe que qualquer rumo que tome não fará diferença, pode ir para qualquer lugar, basta ir. Sabe que ninguém se importará com isso, que você não é mais necessário, que ninguém o estará esperando, que toda aquela alegria gostosa do encontro diário não mais existirá, que não existe mais quem escute suas bobagens.

Seus momentos de criança, de fantasia, manter-se-ão inexpugnáveis dentro de sua fortaleza interior. A mudança é radical e sem apelação. O que você fará com seu tempo. Seus hábitos, que fazer de seus hábitos? Terá que se abster deles, das pequeninas coisas peculiares à vida-a-dois.

O que você fará com toda sua alegria,com seu viver contagiante, a sua vontade de se divertir, participar, brincar. O que você fará com seu mundo maravilhoso, com todas as coisas belas, com todo seu conviver. Você fica pasmado. Sim, porque, agora você é um cara duro, carrancudo, seu mundo agora é uma titica, foi tudo pro espaço.

Você sabe que não adianta acusar ninguém, nem atribuir culpas, por que não existem mais armas disponíveis para prosseguir na luta, tudo lhe foi vetado. Você, textualmente, não pode fazer mais nada. Nada mais depende de você, nada que você fizer adiantará, nem que você seja capaz de acabar com o mundo. Nada que você fez, todo o sangue que você derramou, tudo que você amou, nada disso tem valor. Nem o que fizeram por você, o que sangraram por você e o quanto te amaram. Você só tem uma certeza, e ela é imutável, tudo terminou, não se tem esperança nem de se ter esperança.

Você pensa, puxa… Eu tenho meus amigos, tem muita gente que gosta de mim, minha família, tanta gente. O mundo todo. Tenho até os desconhecidos. Mas você sabe que nada é igual a pessoa que se ama, nada!
Vrrruuuuuuuun…, êpa! Quase que um carro mata todas as suas preocupações, a sua dor, a sua angústia. Mais atenção rapaz, cuidado para não atrapalhar o mundo.

As luzes ferem seus olhos e tudo tilinta à sua volta mas, você não consegue distinguir se é a vida ou apenas, uma manifestação física da matéria. Você percebe que o mar faz barulho, que existe gente, buzina, gritos, histerismo, falsa alegria, máscaras em quase todos os rostos, pseudo-sinceridade, apatia, hipocrisia, cinismo, ironia, felicidade comprada, cocô de cachorro na calçada. Enfim, um mundo. E você não acredita, você está azedo, amargo. Preferiria estar voando sobre a linha do horizonte até encontrar um nó.

Tudo que você vê a sua frente, cartazes, letreiros, palavras, música, tudo que tenha alguma conotação sentimental emociona, causa uma vontade incontrolável de chorar mas, você não chora, por que está na rua, engole tudo com as suas últimas forças. Neste instante, a revolta explode como se fosse um apocalipse nuclear. Mas, você não faz nada, não agride, não fere, não xinga, não blasfema e, nem sequer, chuta uma pedra para não machucá-la. Todavia, no seu íntimo, você descobre o potencial de destruição, de maldade, de atrocidade, de crueldade, de irracionalidade, dentro de você. O medo de utilizar tudo isso é tão grande, que você reza por tudo, por todos e por você mesmo, roga para que te iluminem…